Sobre os trabalhos não aceites

21 novembro 2005

Quem de 71 tira 16, fica com 55. Este bocadinho de informação básica e lapalissiana pode, apesar disso, servir de ponto de partida para muita coisa.

Atirado assim o número, e sabendo-se o seu significado, fica expressa a única coisa que esses 55 trabalhos têm em comum: o facto de não terem sido aceites por nós para figurar neste projecto. Tudo o resto é diferente. Há uma novela e há contos de 300 palavras, há ficção científica, fantasia, horror e também contos onde não encontrámos nem ficção científica, nem fantasia, nem horror, nem nenhum outro dos ramos do género fantástico e há contos que não nos pareceram de todo publicáveis e outros que só recusámos com muita pena.

Apesar do que ficou dito acima, da variedade, e também daquilo que não nos chegou às mãos, emergem alguns padrões, alguns grupos, tendências ou ausências.

Começando pelo fim: as ausências.

Não recebemos nenhuma FC hard moderna. Embora alguns contos, invariavelmente provenientes do Brasil, tentassem um ambiente hard, todos pecavam por uma muito grande falta de actualidade científica e em nenhum se vislumbravam as mais recentes tendências e descobertas da ciência. Mas se os brasileiros ainda tentaram, os portugueses nem isso. De Portugal não nos chegou um único conto que pretendesse ser FC hard, o que não deixa de ser curioso.

Por outro lado, os contos de FC que, de um lado e de outro do Atlântico, mais eficientemente e mais actualizadamente integraram a ciência e a tecnologia na história mostraram uma abordagem soft ao género, por paradoxal que pareça. Isto é, pode-se dizer que recebemos material moderno que se poderia publicar numa revista como a Asimov's, mas não numa Analog.

Este foi, aliás, um dos motivos mais frequentes de rejeição. Não adianta escrever em 2005 a mesma ficção científica que Asimov e os seus contemporâneos escreviam em 1955 ou 1965, mesmo que o cinema e a televisão estejam hoje a adaptar e reciclar essas velhas histórias. A literatura está muitíssimo mais actualizada. Notámos demasiados escritores a cair nessa armadilha, tantos que este foi um dos grandes padrões a emergir das submissões. E não aceitámos nenhuma destas histórias.

Comparativamente, recebemos muito pouco material das componentes não-FC do género fantástico, com excepção do terror. Entre fantasia, fantástico, surrealismo e história alternativa, recebemos apenas 20 contos, mais quatro que os de terror, menos onze que os de FC (o resto são contos que não achámos enquadráveis no género fantástico). A fantasia, em particular, primou pela ausência, em especial aquela fantasia que mais sucesso tem feito nos últimos tempos. Por um lado foi bom, pois não nos interessaria a n-ésima remastigação do Senhor dos Anéis ou de Dungeons and Dragons, mas não é impossível escrever boas históirias originais no género e essas gostaríamos de ler e provavelmente publicar. Não foi desta.

Também muito escasso foi o fantástico propriamente dito. Já contávamos com essa escassez, dado que a pouca divulgação que o projecto teve aconteceu principalmente entre as pessoas ligadas à FC, fantasia e terror e os escritores que escrevem fantástico (e maravilhoso) se movem tradicionalmente em círculos mais próximos do mainstream. Talvez tenhamos mais material desse em próximas edições, se tudo correr bem.

No que ficou escrito acima, já falei da principal tendência que se nota no material submetido em geral e que muito contribuiu para uma boa parte das rejeições: uma certa "antiguidade", um certo grau de obsolescência. Falei da FC, mas isto não se resume à ficção científica: também em muitos contos de terror notámos essa característica, como se os escritores tivessem receio de assumir uma voz própria e procurassem em vez disso imitar os seus ídolos. O problema é que Poe e outros grandes escritores de terror escreveram há 50-100 anos ou mais e é bom que os seus seguidores modernos não se deixem prender em demasia pelo que eles fizeram.

Tanto mais que até nos pareceu ver talento em várias destas histórias mais "antigas". Talento que poderia e deveria ser melhor aproveitado, em histórias mais sofisticadas, mais libertas de amarras, e por isso mesmo mais fortes.

Em todo o caso, o nível geral das submissões supreendeu-nos pela positiva. Poderia ser editado um livro bastante interessante com os melhores trabalhos que recusámos, mesmo se para isso tivessemos de incluir aqueles que não achámos adequados à nossa proposta, apesar das suas qualidades intrínsecas. Estou a lembrar-me, por exemplo, de uma óptima noveleta que acabou por ficar de fora por ser muito extensa e muito semelhante a uma outra noveleta que achámos um pouco melhor. Ou vários contos que foram recusados por haver outros contos dos mesmos autores que tiveram a nossa preferência. Ou contos que gostámos de ler mas onde não vimos elemento fantástico suficiente.

Tenho a certeza (e a esperança) de que acabaremos por ver vários destes contos em livro, de uma forma ou de outra. E julgo que cerca de metade de todos os trabalhos que recusámos são trabalhos que fariam boa figura em publicações amadoras, em fanzines ou na web. Por isso também os autores que ficaram de fora estão de parabéns. Esta antologia também será vossa. Obrigado.

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